Aqueles que um dia foram chamados de loucos por verem além do óbvio, são os mesmos que, séculos depois, a humanidade reconhece como génios. O que hoje é ridicularizado como delírio, amanhã é elevado a visão. O mecanismo é quase sempre o mesmo: primeiro és louco, depois — em alguns casos — excêntrico, mais tarde visionário, e no fim és chamado de génio, quase sempre já depois da morte, quando já não representas ameaça e não estás vivo para o testemunhar. Mas esta transição não é garantida. A maioria morre e permanece apenas como louca, esquecida ou apagada. Só alguns são reclassificados pelo tempo, quando o poder ou a História encontram utilidade no mito.
Maquiavel morreu sem glória, visto apenas como um funcionário suspeito e irrelevante. O Príncipe, ignorado em vida, acabou por se tornar o manual secreto dos reis, dos políticos e de todos os que ambicionam poder. Se a elite tivesse permitido, esse livro jamais teria chegado às mãos do público. E não podemos esquecer que durante séculos foi proibido e queimado em praças, um livro condenado à fogueira pelo mesmo sistema que mais tarde o transformaria em manual de referência. Se esse silenciamento tivesse sido absoluto, Robert Greene nunca teria escrito As 48 Leis do Poder, hoje uma das obras mais famosas sobre manipulação e estratégia. O Príncipe foi a base que abriu caminho para Greene, que levou essas ideias ao século XXI e às massas.
Beethoven, na fase final da vida, era olhado como um excêntrico surdo que gesticulava no vazio, e hoje é intocável no panteão da música. Van Gogh morreu pobre, rejeitado, incapaz de vender o seu trabalho, mas séculos depois os seus quadros são tesouros. Galileu foi condenado e silenciado pela Igreja, e agora é celebrado como pai da ciência moderna. Tesla morreu falido e ridicularizado, mas é a base de grande parte da tecnologia elétrica e sem fios. Kafka quis queimar os seus próprios manuscritos, porque acreditava que não tinham valor, e hoje a sua obra é incontornável. Oscar Wilde foi humilhado, preso por homossexualidade, mas hoje é celebrado como génio literário. Nietzsche morreu insano e desprezado, e hoje é pilar da filosofia moderna. Schopenhauer foi ignorado no seu tempo, mas mais tarde considerado mestre do pessimismo filosófico. Alan Turing, condenado por homossexualidade e morto em desgraça, é hoje reconhecido como pai da computação.
O padrão é evidente: quem rompe com a visão dominante é esmagado em vida, só para ser canonizado depois de morto. O sistema precisa de eliminar a ameaça primeiro, neutralizar a diferença, e só então concede o rótulo de génio. O reconhecimento quase nunca é dado em vida. Só acontece se a elite o quiser usar como ferramenta ainda enquanto respiras. Caso contrário, esperam pela tua morte para te reciclar em mito, quando já não podes resistir nem falar por ti.
E aqui está a chave: o rótulo de génio não é fruto de justiça, é fruto de conveniência. O poder decide quando um louco serve como exemplo e quando deve permanecer enterrado no esquecimento. Elites globais e mercados culturais escolhem quem é reciclado e quem é apagado. O tempo de espera — às vezes séculos — é intencional: só quando a ameaça desaparece é seguro transformar o rejeitado em ícone.
O génio póstumo não serve o criador, serve o sistema. A obra e a figura são apropriadas para legitimar regimes, inflacionar mercados, fortalecer narrativas oficiais e fornecer manuais secretos de poder. O louco de ontem só é celebrado quando já não pode falar por si e quando a sua imagem se torna útil como ferramenta de domínio.
É aqui que entra a engenharia da memória coletiva. Não é a verdade que decide quem é lembrado, mas a utilidade. O talento cria a obra, mas quem decide se essa obra entra na História ou é apagada são as elites que controlam o tabuleiro do poder. A memória é seletiva: alguns são fabricados como símbolos eternos, outros são enterrados como se nunca tivessem existido.
O talento pode criar, mas só a elite decide quem merece ser chamado de génio.
Setembro 2025
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