O público confunde governo com Estado porque a ilusão foi construída para isso. O governo é o ator — muda o rosto, muda o discurso, mas o guião é sempre o mesmo. O Estado é quem escreve, produz e controla o espetáculo. O governo é temporário, o Estado é permanente. Quando se fala em “decisões do governo”, o que há, na verdade, são ordens herdadas, protocolos de continuidade e interesses que atravessam décadas. O Estado é uma estrutura de poder que sobrevive a qualquer eleição, a qualquer revolução, e até à própria democracia.
As organizações de inteligência, os exércitos, os tribunais superiores, os bancos centrais — todos pertencem ao Estado, não ao governo. O primeiro-ministro pode cair amanhã e nada muda nesses bastidores. As operações secretas, as manipulações mediáticas, as guerras invisíveis, continuam a funcionar com a mesma precisão. O cidadão vota em rostos; o Estado escolhe o rumo. O governo é a voz; o Estado é quem fala através dela.

Um dia destes estive a ver Falcon and the Winter Soldier e houve um detalhe que me saltou logo à vista. A jornalista, na televisão, diz que o governo analisou o currículo do novo Capitão América — o físico, o histórico militar, a preparação. Fiquei ali a olhar para o ecrã. Governo? A sério? Como se fosse mesmo o executivo a decidir esse tipo de símbolo nacional. Na vida real, isso nunca seria uma escolha política. O Capitão América pertence simbolicamente à elite militar — uma criação que, num cenário real, estaria sob controlo direto do Estado, do Pentágono, do Departamento de Defesa e das suas divisões de propaganda estratégica. É o tipo de decisão que nasce em comissões invisíveis, entre generais, psicólogos militares e consultores de imagem que estudam o impacto cultural de cada símbolo. O “governo” só serviria para apresentar o resultado, como se fosse uma escolha democrática. Mas a escolha já estaria feita muito antes, atrás das portas onde o povo nunca entra.
Confundir o governo com o Estado é o erro que mantém tudo de pé. É isso que garante que a ilusão continue a funcionar. Enquanto o povo acredita que é o “governo” que decide, o Estado segue em frente, intacto, fora de alcance, operando no silêncio. O sistema não precisa de se esconder — basta-lhe que continuem a olhar para os rostos errados. Achar que trocar ministros muda o rumo do navio é como achar que mudar o actor muda o argumento do filme. Não muda. Porque o guião já está escrito. Porque o palco não manda. Quem manda é quem o construiu.
Outubro 2025
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