Quem vê demais não volta

A maioria olha para os mendigos como derrotados: gente sem disciplina, sem trabalho, sem valor. Mas essa narrativa foi construída.

Nem todos os que estão na rua são assim. Muitos são apenas vítimas da miséria crua, do álcool, da droga, de doenças que lhes tiraram tudo. Mas existe outro tipo de mendigo, raro e invisível: aquele que já viu por dentro a engrenagem e decidiu não cooperar. É desse que se fala aqui.

Esse mendigo consciente já percorreu o sistema por dentro. Trabalhou, tentou, caiu em esquemas, observou como funcionam as redes de poder. Viu a podridão de perto: corrupção, alianças secretas, chantagem, manipulação social. E percebeu a verdade que ninguém quer admitir — o jogo está viciado desde o início. Não importa quanto se esforce: se não obedecer, nunca chegará a lado nenhum. E mesmo que obedeça, também não chegará: será apenas mais uma peça descartável, usada até ao limite e depois substituída.

Ninguém chega à rua de um dia para o outro. A queda é lenta: primeiro perde um emprego promissor, depois uma relação, depois um círculo de amigos. As portas fecham-se uma a uma, até ele perceber que já não há retorno. Não cai por fraqueza; cai porque o sistema o empurra. Empurrado até ao limite, encara o facto: o caminho de volta acabou.

A partir daí deixa de acreditar no discurso oficial — estudar, trabalhar, poupar, construir família, respeitar leis. Tudo lhe soa falso, como uma máscara que cobre o teatro das elites, que vivem de manipular e explorar. Quando a mente desperta, restam duas opções: continuar a fingir ou sair do tabuleiro. Ele escolhe sair.

Na rua, a vida é dura. Também é uma forma de liberdade. Sem dívidas, sem patrões, sem papéis sociais. O preço é alto — frio, fome, solidão. Mas há uma paz: já não precisa de representar, já não tem de fingir que acredita em mentiras.

O estigma é parte do mecanismo. A sociedade é treinada para desprezar o mendigo, para o ver como fracassado. Assim garante que ninguém olha para ele como símbolo de resistência. Chamam-lhe drogado, louco, preguiçoso — não porque seja verdade, mas porque convém à narrativa. É propaganda invisível que protege o sistema.

E quando alguém vê um mendigo na rua, não conhece o passado dele. Pode ter sido trabalhador, pai de família, empresário, soldado, artista. Ninguém pergunta o que viveu ou o que descobriu. Limitam-se a apontar o dedo, certos de estarem perante fracasso absoluto. Essa indiferença é a arma mais eficaz: transformar uma vida inteira em rótulo, apagar a história e deixar só a imagem da derrota.

A invisibilidade funciona como castigo e como arma. Ele está no meio da cidade, toda a gente passa por ele, mas ninguém o encara. Vê todos, mas ninguém o vê. Tratam-no como fantasma vivo, apagado da normalidade. Essa invisibilidade é solidão brutal — e também o último espaço livre: já não pertence a nada nem a ninguém.

Mas ele não é o único. Existem outros como ele, raros e invisíveis, que carregam a mesma verdade. Alguns desses homens dizem coisas que ninguém quer ouvir. Falam da corrupção das elites, do papel das organizações invisíveis que controlam governos e negócios, da mentira das democracias que funcionam como teatros. São vozes sem nada a perder — e por isso não têm medo de falar.

A sabedoria amarga deles não cabe em livros. Sabem mais sobre poder do que académicos e jornalistas, não porque estudaram, mas porque viveram. Não são teóricos; têm experiência directa. Viram como se compram juízes, como se manipulam eleições, como se fabricam heróis e bodes expiatórios. São sobreviventes que tocaram a engrenagem nua.

No fundo, o mendigo consciente é sempre o mesmo: produto final da engenharia social. O sistema não conseguiu domesticá-lo, então expulsou-o. A exclusão total é castigo por não cooperar. Também é liberdade total: já não pertence a nada nem a ninguém. É fantasma vivo da falência do modelo.

O sistema não o destruiu por completo — deixou-o vivo só o suficiente para que todos vejam o castigo imposto a quem recusa alinhar.

Setembro 2025

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